sábado, 23 de maio de 2015

A Crônica sobre o "sic" ... Sérgio Rodrigues

[...] "Sempre impliquei com o sic.* 
É bem provável que na raiz dessa antipatia esteja a ignorância que me levou, menino, não sei se por autossuficiência ou mero espírito lúdico, a tentar adivinhar o que significava aquela palavrinha enigmática, em vez de recorrer a alguma autoridade familiar ou escolar. 

O problema é que a coisa parecia ser de uma gratuidade absoluta. 
De repente, sem mais nem menos, lá vinha o sic, quase sempre grafado naquelas letras inclinadas que só muitos anos mais tarde eu aprenderia a identificar com a ideia de grifo ou itálico. 

Mas não ainda, não já: tudo era nebuloso, 
não fosse aquele um tempo em que já não se ensinava latim na escola, 
mas ainda se abusava de citações e outros cacoetes latinos nos textos de jornal.
No entanto, se a tarefa era dura, não me faltava perseverança. 

Saquei logo que o sic tinha a ver com alguma sacanagem, alguma ironia ou gozação, porque só aparecia quando o autor do texto citava outra pessoa. 

Fui constatando – ou mais intuindo que constatando –
que o sic vinha sempre depois de um erro, 
um escorregão de ortografia ou gramática que, 
por meio dele, ficava denunciado. 

O sic, concluí, era uma risada, uma risada curta. 
Um deboche. 
Um dedo-duro e, ao mesmo tempo, um lava-mãos do autor. 
Tudo aquilo que de fato ele é. 

Como se vê, eu tinha partido da mais completa ignorância para decifrar o sic de cabo a rabo, dos pés à cabeça, meu único e embaraçoso erro sendo o de, talvez por influência do cartunesco hic, imaginar que sicera a representação de um soluço sarcástico. 

Seja lá o que isso for.

Mais tarde, claro, aprendi que ele é um advérbio latino. 

Que significa simplesmente “assim, deste modo”. 
Que por tradição é usado quando, numa citação, há a necessidade de frisar que se trata de transcrição literal, daí soar meio estranha ou ser francamente errada mesmo. 
Quer dizer, sicficou sério, antipático, foi perdendo a graça." [...] 

Sérgio Rodrigues
(1962 - )
ficcionista, crítico literário, jornalista e romancista mineiro
*trecho do livro What Língua is esta? (2005)

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